quinta-feira, 29 de maio de 2008

DEFICIÊNCIA NOSSA DE CADA DIA


O mundo é diverso e as conquistas e avanços na garantia da dignidade humana para todas as pessoas não acontecem por acaso. Eles são resultados de lutas individuais e coletivas, de organizações e de pessoas solidárias à causa. Recentemente, embora seja um militante ativo dos direitos humanos e coordenar um grupo que trabalha o respeito à diversidade, eu tive a oportunidade de sentir na pele, a nossa limitação para tratar as diferenças.

Aconteceu durante uma conversa com uma amiga que tem deficiência. Ela é uma mulher maravilhosa, que devido a uma doença, não desenvolveu os membros superiores. Estávamos numa grande festa e ela era uma das pessoas que mais se divertia. Esta amiga é uma mulher atraente, inteligente, descolada, totalmente independente e muito bonita, possui uma vasta cultura e curso superior. Eu falava o quanto admirava a sua forma de viver e de ver o mundo, sempre pra cima, sendo uma das pessoas “mais de bem com a vida” que eu conheço.
Eu estava elogiando-a, quando reparei que ela ficou tensa. A impressão que tive, foi que esperava, que a qualquer momento da nossa conversa, eu fizesse uma referência sobre a sua deficiência.

Confesso que frases como “apesar de”, ou “você é assim, mas”, vinham vez ou outra na minha cabeça. Neste momento, vi o quanto temos dificuldades para tratar e conversar sobre as diferenças. Senti o quanto não estamos familiarizados com esta discussão. Neste contexto, é complicado falar de coisas simples, como elogiar uma pessoa, sem cair naquele tipo de discurso, “apesar disto, você neste gás todo” ou “você é é exemplo, pois não se abateu pela dificuldade”.
Resisti arduamente contra anos e anos de educação preconceituosa, tentando não cair no lugar comum dos conceitos discriminatórios, pois acredito que a pessoa não deve ser reduzida, identificada ou determinada por uma característica especifica como seus limites sensoriais, mentais ou motores.

Na minha opinião, entre todos os emaranhados de conceitos e preconceitos, existem termos que eu considero piores, porque através de referências de“tolerância”. escondem nas entrelinhas, o preconceito.
Segundo o Dicionário Michaellis, tolerar significa suportar com indulgência, transigir, admitir, dar tácito consentimento a. Pra quem não lembra do que é indulgência, vale a pena dar uma olhada no mesmo dicionário, onde consta ser a qualidade do indulgente, clemência, condescendência, tolerância, remição total ou parcial das penas relativas aos pecados, perdão.

Penso que tolerância seria mais ou menos assim. De repente, você deixasse de considerar as características não-aceitas ou rejeitadas socialmente em determinado grupo (cor, gênero, condição física ou mental, condição socioeconômica, etc...), cedendo uma parcela de consideração, e um pouquinho, em doses conta-gotas, de respeito e dignidade.

Minha concepção de tolerância é muito parecida com a de Bernard Lewis, professor de História da Universidade de Princeton. Ele defende que “A tolerância é, naturalmente, uma idéia extremamente intolerante, porque significa, eu que mando e lhe permito alguns direitos que aprecio, mas não todos, só enquanto você se comporta de acordo com os padrões que determino”. O diretor executivo do Midwest Centre for Holocaust Education, no Kansas, Jean Zeldin, propõe “que o oposto da intolerância não seja tolerância. Seja compreensão. Seja aceitação. Seja compaixão”.
Podemos, lembrar termos e frases extremamente preconceituosos que denotam tolerância, como “é um preto com alma de branco”, ou “dirige bem, apesar de ser mulher”, ou quem sabe, “ele é um bom funcionário,apesar de ser gay”.

Outro termo complicado é o “portador de necessidades especiais”. Pode parecer uma expressão bem-intencionada, mas acho deprimente quando as pessoas, por habito ou ignorância, são chamadas de “portadores”. Parece que estão carregando alguma coisa. É preciso abominar a expressão “portador”, a pessoa não porta, ela simplesmente é deste jeito, com suas potencialidades, incapacidades e limitações.
Na nossa cultura, a noção de deficiência é complexa, estando associada às idéias de imperfeição, fraqueza ou carência, criando assim, sentimentos contraditórios, que vão desde a repulsa até a compaixão.

A palavra deficiência não é negativa em si mesma, pois designa uma realidade concreta. O que precisamos fazer é saber distinguir e diferenciar a pessoa da deficiência, vendo a pessoa na deficiência e não a pessoa como um deficiente.
Se a utilização de termos “tolerantes” é complicada, imagine termos como anormal, (como se existisse alguém normal), paralítico, aleijado, mongolóide, coxo, manco, cegueta, inválido, retardado, débil mental, excepcional, imperfeito, etc. Eles são de uma desumanidade e carregam uma carga muito grande de preconceito. Estes conceitos rotuladores denotam a nossa incapacidade de compreensão ao diferente.

Na maioria das vezes é o meio ambiente e o contexto cultural e socio-econômico que determinam quem é capaz ou incapaz, ou seja, determinam a perda ou a limitação das oportunidades de participar da vida em igualdade de condições com os demais, criando barreiras diferentes para pessoas diferentes.

É bom termos consciência que, todos seres humanos em maior ou menor grau, possuem deficiências. Pare e pense sobre seus limites, sobre as coisas que você não é capaz de fazer ou apresenta alguma dificuldade de realizar. Eu por exemplo, entre ouras limitações, possuo dois graus e meio de miopia, por causa disto, não posso ser piloto, astronauta ou fazer coisas mais cotidianas como pegar um ônibus ou identificar um conhecido (a) a alguns metros de distância sem estar de óculos ou de lentes de contato. Porém, apesar desta deficiência visual, posso fazer muitas outras coisas, inclusive escrever este texto que você está acabando de ler.

P.S. Com relação a minha amiga, tenho certeza que ela é especial. Não por apresentar uma deficiência física, mas por ser este ser iluminado que espalha alegria por onde passa.

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